Matheus Median,
Diretor de Movimentos Indígenas do DCE Livre da USP
Imagem de Valter Campanato
Entre os dias 16 e 19 de setembro, na capital do Brasil, encoberta por fumaça oriunda da queima do Parque Nacional de Brasília, estudantes indígenas de todos os cantos se reuniram no XI Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas, o ENEI. O encontro ocorre anualmente e demarca as lutas por uma educação verdadeiramente possível e justa para os povos indígenas. No ano de 2024, a temática do evento era sobre a luta e resistência nas universidades para efetivar a permanência estudantil.
No primeiro dia, as caravanas iam chegando e o acampamento era montado ao lado do auditório Athos Bulcão. Era evidente a diferença de tamanho das delegações das universidades que possuem o vestibular indígena: as delegações da UNICAMP e UFSCAR eram maiores que a delegação de universidades do Amazonas, o estado mais indígenas do Brasil e com suas universidades muito atrasadas na perspectiva de políticas de acesso diferenciadas para os povos indígenas; inclusive, com vários desses estudantes da UNICAMP e da UFSCAR sendo do próprio estado do Amazonas. Ocorreram as primeiras mesas e houve um momento de oficinas temáticas, a fim de permitir uma maior envolvimento do público nos debates como “saúde mental e racismo nas universidades” e “perspectivas de gênero e LGBTQIA+ nos direitos humanos”. A oficina e as mesas foram organizadas se aproximando ao máximo possível da cosmovisão indígena, dispensando o uso do palco do auditório e colocando o público ao redor da mesa, inclusive na presença de personalidades notórias do movimento indígena como a Ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara. A presença de diversos órgãos do governo federal se deu por todo evento, sendo saudado que, neste momento da história, eles são ocupados cada vez mais por pessoas indígenas: A presidente da FUNAI é indígena, assim como o Secretário de Saúde Indígena e a Ministra dos Povos Indígenas. Ao mesmo tempo, o Estado foi cobrado pelos estudantes que ressaltaram que não basta criar o ministério e as secretarias, ressaltando que esses órgãos precisam de força para lidar com as demandas e que várias secretarias estaduais indígenas (espelhos do MPI nos estados) não têm orçamento próprio. Além de saudar a representação, também foi apontado o contexto de crise: o colapso ambiental era sentido à cada respirar e na altíssima sensação térmica da cidade de Brasília, além do encontro ocorrer em um momento de massacre pelos latifundiários, donos de terras equivalente a cidades inteiras, aos povos indígenas para roubar e destruir suas terras com monocultura, exploração predatória e desertificação. A deputada federal Célia Xakriabá fez uma importante defesa dizendo “Não basta ser indígena!” se tratando de representação em espaços de poder. Célia trouxe à tona a árdua batalha em um congresso reacionário contra a política genocida absurda do marco temporal, que visa legalizar o roubo de terras dos povos indígenas, e de como não basta ser indígena e votar com o agronegócio como fez uma deputada do PL.
Ocorreram mesas sobre educação superior e escolar indígena, sobre saúde indígena e meio ambiente. Em todas, ficou claro uma questão que deveria ser mais clara para a sociedade como um todo: os povos indígenas, em todos os contextos, não buscam viver de forma arcaica e nem abandonar suas culturas. O que se busca é a interculturalidade entre os saberes dos povos e da sociedade não-indígena. Na mesa sobre meio ambiente, por exemplo, ficou enfatizada a prioridade da demanda sobre saneamento básico nos territórios e sua ligação com a saúde. Na de educação, também ficou evidente a busca por equipamentos e processos que viabilizem a educação de qualidade valorizando os saberes tradicionais dos povos e cumprindo o papel anticolonial. Na mesa de saúde, profissionais da saúde indígena relataram como muitas vezes os tratamentos comuns não produzem o mesmo efeito na população indígena, e como a valorização da cultura, da medicina tradicional e do respeito à espiritualidade dos povos costuma ser assertiva e possível de dialogar com as alternativas ocidentais.
Além das mesas, o evento contou com manifestações culturais diárias todas as noites, dando oportunidade aos fazedores de cultura de diferentes povos se apresentarem, mostrando a diversidade artística entre os povos indígenas. Houveram também audiências no Congresso Nacional, uma sobre a criação da Universidade Indígena e a outra sobre Ciência Indígena na Academia. A participação do público do ENEI nessas audiências se deu pela vacância no horário no qual ocorreria os jogos esportivos, impedidos pela fumaça que colocava a saúde em risco. Pelo mesmo motivo, a marcha dos estudantes indígenas que faria o chão dos três poderes tremer também precisou ser cancelada.
Um ponto de extrema importância do evento foram as lutadoras populares do movimento estudantil indígena mais experientes dividindo seus saberes, como fez Rutian Pataxó, mestranda da UFBA e coordenadora de fundação do Núcleo de Estudantes Indígenas da UFBA ainda durante sua graduação na mesma universidade. Em entrevista ao Jornal A Verdade, Rutian contou sobre as lutas que travou dentro da universidade que traçaram o patamar atual de uma boa relação com a reitoria da universidade. Rutian, que hoje também é primeira ouvidora-adjunta indígena da Defensoria da Bahia, conta que essa luta foi travada inclusive ocupando espaços do movimento estudantil e se relacionando com entidades estudantis como o Diretório Central dos Estudantes. “Na universidade você sente o racismo muito mais presente, muito mais forte. De se sentir inútil, de não se sentir capaz, de sentir que você é o mais burro da turma. Eu entrei no período que a primeira turma de cotistas não tinha se formado ainda, era tudo muito novo. Eu era a primeira indígena do meu curso.” declara Rutian sobre seu ingresso na faculdade de economia. “Nós éramos poucos na UFBA naquele tempo e a gente era muito unido no sentido de que a gente precisava de buscar políticas públicas efetivas. A gente idealizou a criação do núcleo. A gente era um núcleo de 10 mais ou menos e a gente peitava muito a universidade para ter políticas públicas e ações afirmativas para povos indígenas, e a gente não se contentava com as negativas que a universidade dava.” continuou Rutian. Ela também contou sobre a conquista da isenção do vestibular para indígenas e quilombolas, que foi conquista de luta do núcleo “Tudo foi feito na base da militância estudantil. Nada foi feito de graça porque a universidade queria fazer, a universidade fez porque foi pressionada a fazer.” Rutian acrescenta sobre os eventos que eram feitos a fim de demarcar debates importantes e ressaltar questões pertinentes para os povos indígenas do nordeste, como a discussão sobre os fenótipos e estereótipos. Ela também conta sobre o envolvimento das lideranças do movimento indígena nas lutas do movimento estudantil, e a interlocução que era estabelecida com os estudantes que estavam na universidade em contato com a burocracia da sociedade não-indígena.
Na mesma linha, outra importante entrevista dada ao Jornal A Verdade foi a de Izabel Munduruku. Doutoranda em história pela UFMA, Izabel é coordenadora do Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas, o MEIAM. Ela descreve o MEIAM como um movimento representativo dos estudantes indígenas a nível de graduação e pós do estado do Amazonas. Izabel conta que o MEIAM surge com a promulgação da constituição de 88, juntamente com várias entidades auto representativas dos povos indígenas do Amazonas. “Nossa presença ainda é uma presença muito tímida dentro da universidade. A universidade é uma estrutura colonizadora que possui princípios que não compreendem a complexidade cultural, linguística e histórica dos povos indígenas.” “Somos quase 500 mil indígenas só no estado do Amazonas. Isso demonstra que o Amazonas precisa de uma política de inserção e permanência diferenciadas. O portugues no Amazonas não é a primeira língua.”Justifica Izabel sobre a necessidade de políticas de acesso específicas. Ela também comenta a falta de diálogo das universidades do estado com o movimento estudantil indígena, considerando que no estado não há vestibular indígena, e que muitos estudantes recorrem a universidades longínquas dos seus territórios que possuem políticas de ingresso específicas. Izabel também comentou demandas para além do ingresso na universidade, como a necessidade de curricularização da educação indígena na formação de professores que, no estado mais indigena do Brasil, com certeza lidarão em algum momento com essa necessidade.
O último dia do evento foi marcado por uma mostra científica na qual os estudantes apresentaram seus trabalhos e passaram por uma comissão avaliadora que elegeu os melhores trabalhos. A campeã foi Susan Eloy Terena, que concedeu uma entrevista ao Jornal a Verdade contando sobre seu trabalho. “Eu nasci em Campo Grande, mas minha família vem de Miranda, da Aldeia Cachoeirinha”. Susan também conta que agora está na pós-graduação em antropologia, área completamente diferente da sua área de formação, que é administração de empresas, pois pesquisa sua auto-etnografia, visando descrever o seu caminho de volta ao povo. “Eu tive um sonho com minha avó paterna, que ela estava doente e acamada, eu tentava chegar próximo dela e as mãos dela estavam amarradas” Ela complementa que esse sonho foi parte do chamamento ancestral para que ela buscasse sobre a sua identidade. Susan foi conhecer a avó, que já estava muito debilitada pela idade, surda e cega, mas falou o nome de Susan ao ter contato com a neta. Susan descobriu que a avó era uma liderança espiritual do povo Terena, uma Koíxomoneti, mas que teve suas práticas, saberes e cultura cerceados durante a vida. “Território não é só o lugar físico, território também é o que está dentro de nós. Volto pra academia justamente para discutir a identidade que me foi negada durante 30 anos”. Assim como as outras entrevistadas, Susan liga sua identidade à luta que faz dentro e fora da universidade ao lado dos povos de diferentes contextos. Ela conta de uma entidade da UFMS da qual agora é diretora, que é a Rede de Saberes, e como a entidade cumpre um papel de coletivização das vivências dos estudantes indígenas da universidade. “Estou ali na faculdade resistindo também e lutando para permanecer, deveria existir políticas de permanência para todos!” completa Susan.
Desde que o imperialismo tocou suas garras brancas sobre Abya Yala, existe o sonho ainda não acabado de exterminar os povos originários pelas políticas genocidas não só da pólvora e das armas biológicas, mas também do extermínio cultural Os estudantes indígenas não têm medo da luta e não se contentam com migalhas e política assimilacionismo! Em universidades e escolas de todos os biomas, vem se acentuando a luta pela educação que, para ser libertadora, precisa ser anticolonial e dotada de políticas específicas e diferenciadas para os povos originários. É preciso saber ler as interfaces da sociedade indígena e não-indígena e compreender que a manutenção da cultura dos povos e o atendimento de suas demandas atuais não são contradições e sim parte relevante das necessidades para um futuro com floresta em vez de fumaça, com equidade em vez de racismo e com a ancestralidade de Abya Yala viva e presente no dia-a-dia do povo brasileiro. Fortalecer a luta dos estudantes indígenas e enfraquecer a sociedade de classes, o capitalismo.
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